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A “caverna” do aviltamento do escriba

Por: Omardine Omar

 

Escuro e sombrio. Fedorento e indigno é o local para onde a “bófia” me atirou na tarde do dia 25 de Junho, quando o País inteiro enforcava a voz na festa do dia da Independência Nacional. A tarde prometia ser produtiva em termos jornalísticos, mas terminou numa pólvora de tragédia. Três jovens foram agredidos defronte ao famigerado mercado Estrela por agentes da polícia que pareciam mais robots que seres humanos. A “bófia” transformou nossos corpos em ringues de violência.

 

Naquela tarde fomos submetidos a uma realidade aviltada, com os nossos direitos molestados e retirados de nós tal como se arranca doce da boca de uma criança. Naquela tarde, a “bófia” disse que nós não tínhamos nenhum direito e para nos mostrar desfolhou-nos, na cara, todas as páginas da Constituição da República de Moçambique (CRM) e outras leis. Nenhuma lei foi válida naquele espaço, razão pela qual atiraram-nos à cela pelos fundos, onde o ar era sufocado pelo mijo amarelo dos reclusos. A minha mente produzia vários pensamentos naquele instante. Ali chorei, zanguei-me, ri-me, sentei-me, levantei-me, circulei, encontrei respostas, desmenti-me e, por fim, (…) fechei e abri os olhos, mas apenas via uma luz clara de escuridão e uma porta fechada a sete chaves.

 

Naquela cela, o frio era tanto que até me penetrava nos ossos. O frio roía os ossos. Tinha uma camisete branca que sangrava de dor no meio da escuridão; estava rodeado de mosquitos e outros insectos que me picavam todos os cantos do corpo. Sem soluções, os meus comparsas de cela batiam a janela com um objecto estranho que encontramos naquela caverna de terror. Depois de tanta insistência surgiu um agente e perguntou-nos: “vocês nunca estiveram numa cela?” E nós, com a voz consumida de injustiça, respondemos: Não!

 

Três horas depois começamos o exercício de adivinhar as horas. Não tínhamos uma ideia certa dos ponteiros do relógio. Olhando pela janela, os colegas de cela estimavam, pela posição da lua e das estrelas, uma determinada hora. No meio à aflição, indagávamos: “será que seremos soltos hoje?” A cada segundo que passava, o desespero crescia, parecia um balão crescendo na boca de uma criança. Tentei reflectir sobre as causas da minha detenção circulando pela cela. Parava e pendurava-me na janela. E comecei um diálogo com os companheiros de cela, tentando buscar respostas da situação que estávamos a viver. Mas ninguém tinha respostas…

 

A noite corria devagar. A esperança de sermos soltos sumia nos cantos da cela. A raiva pela injustiça subia. A saudade de estar ao lado da Alice e da minha esposa era tanta e comia-me a alma inteira. Juro-vos que em algum momento tive a vontade de recomeçar o dia, mas aos poucos percebi que não tinha nenhum poder sobrenatural e que era um ser-humano vivendo uma realidade que muitos nossos irmãos vivem justa ou injustamente.

 

Na cela da 7ª esquadra, as condições de higiene não me permitiam pensar o certo, mas reavivavam-me o ódio, a raiva, a dor e também a indignação por tudo o que estava a viver. Quando eram 19:00 horas, a Olga, minha esposa, trazia a nossa refeição. Na ocasião, pediu para que nos retirassem da cela para um local mais claro, todavia, os agentes pisaram o seu pedido com a mesma força que usaram no mercado Estrela. Disseram-na para nunca mais voltar àquele local. Em seguida, um dos agentes abriu a cela e atirou-nos o saco plástico com nossa refeição e nós entulhamo-nos em cima do saco plástico como cães, como bichos num zoológico.

 

Devido às condições de higiene e falta de luminosidade da cela acabamos não abrindo o plástico e passamos a noite sem comer, vigiados pela fome. Quando eram 20:00 horas, percebemos que iríamos passar a noite naquele local; sem cobertor, sem nada, apenas cobrindo as nossas próprias sombras e lavando-nos com as nossas línguas como os gatos.

 

As pernas estavam exaustas, não havia espaço para sentar e como bichos aceitamos a situação perante a plateia da injustiça. Sentamo-nos no soalho, dobramos as pernas, os braços e encostamo-nos às paredes, com estórias de vida e registos das pessoas que por ali passaram.

 

Ninguém conhecia a razão da detenção mesmo quando aqueles dois “bufos” trouxeram aquele auto de total infâmia. Com enormes balões nas barrigas, respirando com os pulmões da fome, caras e olhos amarfanhados pela gordura da injustiça. Aquele auto da infâmia visava esconder a crueldade e os reais objectivos da detenção. Intimidar-me! A versão confirmou-se quando, no período da manhã, os mesmos vieram em bloco e começaram a despejar seu vômito sobre mim. Toda a sujeira dos seus vómitos acumulou-se em meus ouvidos.

 

A “bófia” prendeu inocentes e reconheceu à nossa frente. Mas o mal já estava feito e não tinham como corrigi-lo. A “bófia” demonstrou-me que muitos condenados a penas inacabáveis foram vítimas da injustiça da própria polícia.

 

Regressando à caverna do aviltamento do escriba percebemos logo que mesmo sem uma acusação verídica continuaríamos detidos; ou, caso contrário, os meus colegas seriam soltos e eu ficaria por ali, uma vez que várias vezes, os “bufos” disseram que queriam trabalhar comigo. Meu Deus, que trabalho eu lhes prestaria? Engomar-lhes as enormes barrigas, diminuir-lhes as camisas enormes povoadas de ossos ou varrer os bancos do Mahindra para irem pescar outros inocentes.

 

Naquela cela, perdi-me como um ser humano. A insanidade policial substituiu a racionalidade da justiça. O ser humano, aliás, a “bófia”, provou-me que é um animal dissimulado e insensível. As paredes daquela cela tinham nódoas ensanguentadas, sombras de fantasmas tossindo de tuberculose e uma palha de gente com HIV enterrando-se dentro de um túmulo de silêncio. Compreendi que a dignidade humana não existe por trás das grades. Naquele espaço, o medo não ajuda. Precisa-se encarar os medos e acreditar-se que um “salvador” virá (advogado, procurador ou juiz). Ali, ensaia-se a entrada ao inferno…

 

A noite crescia com asas enormes, a nossa esperança perdia-se, sei lá onde. A certeza de que a detenção já tinha ganho outros contornos encorajou-nos de que a justiça seria feita, o que não aconteceu. A noite crescia sem parar como uma bolha de incerteza em nossos corações. As nossas pernas e joelhos exaustos; tivemos de aceitar a humilhação de dormir no soalho sujo e nauseabundo com os pés colocados num plástico para minimizar o frio que nos penetrava as entranhas. Dobrarmo-nos no soalho e inventar um calor para nos aquecer.

 

A noite corria. Repentinamente quando tentávamos conversar com o sono, eis que acontece algo estranho. A porta principal que separava a nossa cela das outras era aberta e dois jovens, delinquentes, eram violentados com mais de 15 chambocos. Com uma voz de aflição, os rapazes choravam e gritavam que nem um bebé abandonado num caixote de lixo. Minutos depois, os jovens foram atirados, como fardo inútil, na nossa cela. Em conversa silenciosa, um deles pergunta ao outro: “onde está o dinheiro do furto?” Silenciosamente, o outro respondeu: “os polícias levaram os 12 mil meticais, pha!”.

 

Os jovens contaram que foram detidos num assalto a uma das lojas, do grupo Intermoda, e que o valor não foi para o processo, mas sim, para os bolsos dos agentes. De repente, os rapazes estenderam-se ao soalho escuro e meteram-se num sono profundo. Eu procurava uma gota de sol, em sinal do ensinamento da Alegoria da Caverna, parábola platónica, cogitava ali ideias soltas; e não entendia o porquê de toda aquela situação.

Fonte: Carta de Moçambique