“Como é que um corrupto pode lutar contra si mesmo? É preciso uma espécie de revolução.” As ameaças do governo. A guerra. E o deslocado que disparou contra insurgentes.

 

Entrevista ao Bispo de Pemba*

 

O seu antecessor, D. Luiz Lisboa, admitiu recentemente que foi ameaçado pelo governo moçambicano antes de ser transferido pelo Papa Francisco para o Brasil. Dois meses depois de ter assumido a diocese de Pemba (Cabo Delgado), e poucos dias depois de os bispos de Moçambique terem assinado uma declaração demolidora, D. António Juliasse deu uma entrevista ao Observador na sua residência. Ao longo de 45 minutos, criticou a falta de esforços contra a corrupção “que atinge as esferas mais altas”, atacou a forma como a cúpula do regime tentou minimizar a guerra em Cabo Delgado e relatou um testemunho dramático de quem pegou em armas para enfrentar os insurgentes em Palma mas teve de fugir.

 

Acaba de ser emitida uma declaração dos bispos de Moçambique, onde referem que “não há indicações claras de que a breve trecho haverá superação das causas que alimentam este conflito” em Cabo Delgado. O que é que o governo moçambicano devia estar a fazer e não está?

 

Os bispos constataram o contexto social no país. O que se deve fazer é mobilizar energias e esforços, de forma coletiva, para descortinarmos caminhos seguros e de integração da juventude e de todo o povo…

 

Isso não está a ser feito?

 

Os bispos entendem que não está a ser feito de forma adequada. Se perguntarmos a um jovem para que lado vai o país, há uma insatisfação muito grande. Se perguntarmos qual é o seu futuro, têm dificuldade em pronunciar-se a respeito. Em nosso entender, devem ser apontados caminhos com clareza… para que lado vamos. Quando se vê que alguns poucos vão se beneficiando cada vez mais e tantos outros jovens não têm possibilidade e não descortinam essas possibilidades, ficam vulneráveis para qualquer tipo de coisas.

 

Se eu fosse presidente, a minha preocupação seria outra. A minha presença seria outra. Isto seria prioridade na agenda. Estaria a falar disto todos os dias. E até a delegar outras funções. Para inaugurar uma escola, tenho ministros, vice-ministros, primeiro-ministro. Para me dedicar a uma causa que realmente afeta a soberania nacional é preciso encontrar com muita urgência resultados eficazes e não minimizar um problema destes. (…) O que o povo moçambicano espera de um governante não é aquilo que vemos.

 

O comunicado refere a total falta de transparência na subtração dos recursos e refere que os jovens são vítimas de uma cultura de corrupção. No entender da igreja, o regime é corrupto genericamente?

 

Isso não é para esconder. Todos sabem. Em vários mandatos, os presidentes de Moçambique propuseram-se lutar contra a corrupção de forma contundente. Ao invés de lutarem, as coisas agravaram-se cada vez mais. Todos têm esse entendimento, o mal está diagnosticado há muito tempo. Mas não se vê uma luta eficaz. Às vezes é muito difícil quem está no problema lutar contra si mesmo. Como é que um corrupto pode lutar contra si mesmo? É preciso uma espécie de revolução. A corrupção ficou como uma coisa normal. Para conseguir algum emprego, é preciso pagar muito dinheiro. Um jovem que acabou de sair da escola ainda não tem como pagar. Essa injustiça existe desde a escala mais pequena, ao nível da localidade, até ao mais alto, como se viu no caso das dívidas ocultas. A nível téorico-político há grande preocupação quando se pede o voto, mas na prática a corrupção alarga-se cada vez mais, atingindo as esferas mais altas.

 

Consegue ver corruptos na cúpula do regime?

 

Não podemos apontar o dedo a um ou a outro. Mas os factos que ocorreram com as dívidas ocultas foram prova irrefutável de que a corrupção está neste nível mais alto das nossas lideranças. Quem? É a justiça que devia provar. Essa corrupção é beneficiada com a falta de uma justiça que atue, com isenção, que faça o seu trabalho. Quem tem poder facilmente escapa ou vai protelando a justiça. E os mais simples apanham mais do que os outros. Essa diferenciação provoca também mal estar.

 

O Presidente é natural daqui da província de Cabo Delgado, de Namaua. Neste momento em que a província vive uma crise tão difícil há tantos anos, faria diferença uma presença mais regular do drama de Cabo Delgado no discurso do presidente e ter uma presença mais regular aqui, indo a Palma confortar as pessoas ou aos distritos mais próximos dos ocupados pelos insurtentes?

 

Eu não sei qual é a agenda do presidente. É natural de Cabo Delgado mas presidente de todo o país. E deve governar o país, sem colocar mais privilégios num ou noutro. Quando há uma situação como esta que estamos a ver, em que há uma violência bárbara, com violação grave dos direitos elementares da pessoa humana, do direito à vida, à habitação, à terra, quando acontece não com uma pessoa ou duas, mas com distritos inteiros que vão ficando despovoados, se eu fosse presidente, a minha preocupação seria outra. A minha presença seria outra. Isto seria prioridade na agenda. Estaria a falar disto todos os dias. E até a delegar outras funções. Para inaugurar uma escola, tenho ministros, vice-ministros, primeiro-ministro. Para me dedicar a uma causa que realmente afeta a soberania nacional é preciso encontrar com muita urgência resultados eficazes e não minimizar um problema destes.

 

O que está a pôr em risco este investimento é a violência. E a pergunta é: porque não se concentrou a preocupação em resolver esta violência para não pôr em risco tudo o resto? Foi-se sempre minimizando até chegar a este ponto. Deverá haver outros interesses que não são públicos.

 

Porque é que acha que o presidente faz isso?

 

É difícil. Daí também o nosso espanto e o de muitas pessoas. Deverá ter as suas razões. O que o povo moçambicano espera de um governante não é aquilo que vemos. Isso faz crescer suspeitas de que pode saber algo ou de que haja um plano. Mas são suspeitas. Essa atitude deixa-nos com algumas reservas.

 

Moçambique tem grandes riquezas naturais, mas não se consegue que sejam distribuídas pela população. Este projeto da Total poderia ajudar a atenuar a diferença entre ricos e pobres em Moçambique. Acha que a forma como o governo.e a presidência têm conduzido este processo pôs em risco um investimento desta envergadura?O que está a pôr em risco este investimento é a violência. E a pergunta é: porque não se concentrou a preocupação em resolver esta violência para não pôr em risco tudo o resto? Foi-se sempre minimizando até chegar a este ponto. Deverá haver outros interesses que não são públicos.

 

Como vê a relutância face à participação de tropas internacionais na resolução do conflito?

 

O discurso de preservar a soberania não tem bases firmes na ética. Não podemos falar de soberania quando há pessoas a morrer e não as defendemos nem ao território, usando os meios que podem fazer com que avancemos e preservemos a vida. A questão seria: então o que se está a fazer para defender a vida das pessoas e o território? Não adianta dizer: “Eu não trago ninguém, porque quero manter toda a minha casa com integridade”. “Mas a tua casa está a arder e você fica sem nada. É melhor pedir aos vizinhos para chegarem e acudirem com água para resolver esse problema. A vida humana está acima de qualquer outro tipo de negociação. Para defender a vida, temos de fazer tudo, inclusive ultrapassar coisas que habitualmente não devíamos fazer.

 

Estrategicamente devia haver envolvimento militar dos vizinhos da África austral?

 

Não posso entrar no campo estratégico. Eu entro no campo da defesa da vida. É um campo ético e moral. Entre ganhos materiais e a defesa da vida, eu defendo a vida. Entre falar da soberania nacional de forma muito fundamentalista e defender a vida, eu prefiro a vida. Não podemos chegar ao radicalismo e colocar a soberania como algo que ultrapassa a vida das pessoas. A soberania está em favor da vida das pessoas. A defesa da integridade territorial tem em vista o bem estar das pessoas que estão lá. Se esse bem estar é violado, como se pode falar disto? Esta é a perspetiva dos bispos. Estratégia é com os militares. Não temos nada contra o envolvimento da comunidade internacional.

 

Entrevista de Pedro Jorge Castro (do Observador.pt). Publicada originalmente a 27 de Abril.

Fonte: Carta de Moçambique

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