França – o berço da afirmação nacionalista de um socialista convicto

No país de Simone de Beauvoir, onde viveu perto da Praça Sorbonne, tendo estudado Ciências Económicas e Sociologia, o quarto filho de Firmino e Teresa dos Santos deu tecto e direcção a muitos nacionalistas africanos.

Enquanto ali esteve, Marcelino envolveu-se na realização da Conferência de Representantes de Grupos Nacionalistas das Colónias Portuguesas de África, em Dezembro de 1957. Tal evento aconteceu de forma discreta. Contribuiu, para o efeito, o facto de Marcelino conseguir actuar na clandestinidade e ser muito cauteloso. Por isso, ao longo dos oito anos a morar em França, os gauleses não se interessavam muito com o que ele fazia.

O então jovem moçambicano era modesto, pagava com pontualidade a renda do quarto e não recebia visitas barulhentas. Os parisienses chamavam-no “o estudante”.

Foi em França que Dos Santos sustentou esse sonho de ver criada uma organização para todos os patriotas das colónias africanas, representando, com efeito, os interesses do Movimento Democrático Juvenil das Colónias Africanas de Portugal na União Internacional dos Estudantes (UIE) e na Federação Mundial da Juventude (FMJD).

Na casa do moçambicano, prepararam-se documentos apresentados na 1ª Conferência Afro-Asiática, realizada no Cairo, em Dezembro de 1957, com a intenção de desmascarar o regime salazarista. Mas os amigos de Moçambique, Angola, Cabo Verde e São Tomé não conseguiram enviar um representante sequer para a capital do Egipto, por falta de verbas que permitissem pagar uma passagem de Paris para Cairo, hotel e alimentação. 

Ao fim de oito anos, esse sonho trouxe-lhe problemas. Em 1959, em virtude do seu intenso envolvimento na luta anticolonialista, foi expulso de França. Ainda assim, conseguiu arranjar emprego para um ícone da literatura moçambicana no consulado de Marrocos em Paris, Noémia de Sousa, autora de Sangue negro.

 

Deixando Paris para trás, Kalungano, pseudónimo mais conhecido do nacionalista, atravessou a fronteira francesa e refugiou-se no país vizinho, Bélgica. Ali, nada mudou na maneira de ver o mundo. Antes pelo contrário, os seus propósitos mantiveram-se incólumes, daí o seu envolvimento em assuntos “proibidos”, que lhe poderiam mais uma vez custar a prisão, na melhor das hipóteses, e a vida, na pior.

Da Bélgica, Kalungano parte para Inglaterra, trilhando caminhos, poucas vezes, e labirintos, muitas, que o permitiram ser amigo de grandes homens do seu tempo: Mao Tse Tung, Nelson Mandela, mesmo antes de ser preso pelo regime racista do Apartheid, Oliver Tambo, Ben Bella, Fidel Castro, Aimé Cesaire e David Diop. Em contrapartida, travou muitas querelas com Leopold Senghor, a quem ele e os amigos acusavam de ser antinacionalista.

As relações entre ambos estreitaram quando Senghor ficou chefe de Estado do Senegal. Marcelino sempre defendeu uma luta contra a ocupação colonial em África por todos os que defendessem a causa, independentemente do sexo, idade, cor da pele ou religião. Por isso, na juventude, foi reticente em relação à Negritude, pois entendia que o movimento tinha na sua essência motivações racistas. Também por isso discordou de Senghor em muitos aspectos, sempre apoiado à sua profunda bagagem teórica que de longe o colocava como um farol na Frente de Libertação.

Bem dito, pouquíssimos militantes da Frelimo podiam discutir política e os seus labirintos no mesmo patamar que Marcelino. O percurso de Marcelino dos Santos foi caracterizado pelo exercício de camaradagem e cumplicidade na perseguição de propósitos colectivos. Assim, contribuiu imenso na angariação de apoios financeiros para os movimentos africanos que lutavam pela independência.

Além disso, depois de publicar um título na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Kalungano recebeu em direitos autorais 750 mil francos franceses. Ao tê-los em mãos, dividiu-os entre os amigos, porque não sentiu que o dinheiro fosse apenas seu e ainda subsidiou a edição de Cadernos de poesia negra de expressão portuguesa, contendo poesia de Noémia de Sousa, dedicado ao poeta cubano Nicolás Guillen, muito estimado pelos nacionalistas africanos e que, à semelhança de Nazim Hikmet, Paul Éluart, Vladimir Lenine e Josef Staline, o inspirou imenso. 

Deixando a Europa para trás, no regresso ao “berço da Humanidade”, Marcelino aterra em Marrocos. A partir dali, o homem que se preocupava em informar a família sobre o que se passava com ele, escrevendo ao pai, envia uma carta a dizer que já não podiam manter contacto, pois a situação se complicara e qualquer deslize poderia ser fatal para quem lhe escrevesse. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) estava mais atenta aos passos de Marcelino. Com aflição, os pais e irmãos só podiam aguardar por notícias ocasionalmente.

Diante de tanta agonia, a mãe de Marcelino era dos membros da família que sempre alimentaram o sonho de o rever, porque, segundo entendia, qualquer dia a opressão colonial terminaria. O que ela não tinha certeza era se, depois desse império repugnante cair, o filho estaria ainda vivo.

 

Fonte:O País

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