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Gaveta, cinzas e solilóquios: o ponto de partida e a voz de Nick do Rosário

Em breve, o livro Gaveta de cinzas: solilóquios, da autoria de Nick do Rosário, será apresentado publicamente na Cidade de Maputo. Enquanto isso não acontece, até porque os centros culturais estão encerrados no país, o poeta conta como foi compor os versos do seu livro de estreia, refere-se ao poder da literatura e ainda afirma como gostaria que fosse lido: em câmara lenta.

 

Esta Gaveta de cinzas: solilóquios é uma obra feita de amor e homenagens. Uma forma autêntica de começar…

Exacto. Como o meu primeiro livro, quis trazer estas homenagens ao meu pai, à minha mãe, à minha avó, à minha filha e aos meus amigos. É uma boa forma de começar.

 

Interessou-lhe fazer dos seus sujeitos poéticos uma possibilidade de exprimir o amor, às vezes, destinado a um ser ausente. Como idealizou essa entidade que está connosco e, simultaneamente, distante?  

Realmente, os meus textos têm isso que acaba de mencionar. Eu sou uma pessoa apaixonada e que vive o amor todos os dias. Falar de amor e escrever sobre o amor é muito simples, porque eu gosto de amar. Os meus textos têm essa particularidade. Mas, além de amor, este projecto tem muita dor. Comecei a escrever o livro numa fase difícil. Estava com muitas dificuldades. Nessa altura, peguei um livro de José Craveirinha, fui-me identificando com os textos e comecei a escrever. Fui escrevendo sobre mim (também) e, nessa coisa de escrever, não podia faltar o amor.

 

Projecta o amor como uma partilha ou como uma busca?

Partilha e busca. Temos aqui alguns textos que falam de amor que se espera. Há uma desolação e um sentimento de tristeza.

 

Isso tem a ver com o mundo que temos hoje?

De certa forma, sim. Porque o mundo que temos hoje é muito materialista. Eu tento espalhar o amor nos meus textos para que as pessoas se toquem. É necessário falar disso.

 

Tem alguma pretensão ao convocar os leitores a uma certa ideia de razão?

Eu leio os comportamentos das pessoas, faço leituras de mentes e sinto que é preciso mudar de postura. A literatura tem o poder de formar crenças, de firmar padrões e de mudar o comportamento das pessoas de uma sociedade. Precisamos de espalhar livros de modo que as pessoas leiam mais.

 

Neste livro de estreia noto o seu fascínio pela composição haikai. Há uma motivação ao investir a expressão poética em textos curtos?

Talvez, isso tem a ver com os textos que tenho lido. Aparentemente, parece uma coisa fácil de se fazer, mas é um trabalho muito árduo. Se for a ler os meus textos, em duas ou três estrofes percebe do que se trata, a ideia do texto. Leio muito haikai e textos desta estrutura. É uma das minhas fontes de inspiração.

 

No seu caso, por que a possibilidade de criar musas é inspiradora?

Acho que as musas serão sempre inspiradoras. Sem elas, não existe o poeta. Um texto que fiz para a minha filha, em algum momento, tem a Nicole, embora menina, como minha musa.

 

Em que momento decide usar as setes chaves para abrir esta Gaveta de cinzas?

Acordei louco. Peguei no projecto e entreguei a uma editora para ver a possibilidade de publicar, que é a editora Gala-Gala.

 

Esta não é uma Gaveta qualquer. E sai em solilóquios…

Exactamente, porque alguns textos dialogam comigo. Quase todos. Daí Gaveta de cinzas: solilóquios. E esta é uma maneira de dialogar com os outros.

 

Esta forma de amar, o que lhe custa?

Custa-me uma vida. É a minha maneira de ser e de estar. A vida faz mais sentido agora, com este livro publicado. Há dias fiquei a ver o livro na livraria, sem que ninguém me reconhecesse, e foi muito especial.

 

Pensa no que os seus textos podem ter, em termos de impacto, nos leitores que o lêem?

Os meus textos trazem, de alguma forma, temas para reflexão. Acredito que, quem for a ler o projecto, encontrará marcas do que está a acontecer na sociedade. O projecto tem 45 textos. Dos 45 textos, temos muita coisa escrita sobre a nossa sociedade. Então, eu trago também textos que possam ser úteis para a reflexão.

 

Quanto tempo levou a escrever?

Uns dois anos, porque eu não estava satisfeito com os textos. Corrigia-os constantemente. Como primeiro projecto, estava muito inquieto.

 

Este livro tem o prefácio de Demétrio Alves Paz, que a certa altura diz que os seus poemas não têm apenas uma origem, mas também uma continuidade…

Com certeza. Neste projecto eu tive de cortar e arquivar uma parte. Tirei cerca de 25 textos, por entender que a temática não encaixava. Ficou um projecto à parte, que também está concluído. Na verdade, eu tinha um outro projecto pronto a publicar. Preferi este porque, de contrário, o livro ficaria mesmo na gaveta de cinzas. Este tinha de ser o primeiro. Este é um ponto de partida. Queria que estes textos estivesse em uma prateleira.

 

Quando leu o prefácio de Alves Paz, o que lhe ocorreu?

Ele trouxe alguns pontos que não tinha reparado. Por exemplo, a questão da família. Quando li o prefácio, fiquei mais emocionado. Foi espectacular.

 

Dizem que os autores nunca têm um livro preferido. Não é verdade. Parece que este livro continuará a ser o seu eleito?  

Há um projecto que já fechei, que eu acho que é o meu livro, pela maneira como o idealizei e escrevi. Acho que aquele é o meu livro. É completamente diferente deste, tem outras ideias e outras coisas. Mas este tem uma carga emocional. O primeiro é sempre o primeiro, e queria apresentar-me com este projecto.

 

É formado em Literatura Moçambicana pela Universidade Eduardo Mondlane. Valeu-se dos conhecimentos adquiridos no curso ao escrever o livro?

Eu comecei a escrever muito antes de ir à universidade. Claro que aprendi muito. Lá tive bons professores, os que considero os big five: Nataniel Ngomane, Gilberto Matusse, Francisco Noa, Aurélio Cuna e Teresa Manjate. Também tenho de dar os parabéns ao Lucílio Manjate. Na época que eu entrei ele era professor assistente e foi uma das pessoas que me impulsionou muito para este projecto que eu trago aqui hoje. Não directamente, mas me impulsionou.

 

Como gostaria que os leitores lessem esta Gaveta de cinzas: solilóquios?

Em câmara lenta.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro a obra de Gran’Mah; Nudos, de Eduardo White; e Corpo, de Carlos Drummond de Andrade.

 

Perfil

Nick do Rosário nasceu na Cidade de Quelimane. É licenciado em Literatura Moçambicana pela Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Trabalha na área de viagens e turismo. Escreve poesia desde 2004. Em 2019, participou no 2º Concurso Internacional da Revista Inversos – Doces Poemas (Brasil), tendo o seu texto sido seleccionado para a antologia do prémio.

Fonte:O País