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O fim da dicotomia Frelimo-Renamo no espectro político de Moçambique

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Quando Moçambique iniciou sua transição para a democracia com o fim da guerra dos 16 anos em 1992, logo cedo se implantou um cenário de bipolarização parlamentar, com a Frelimo, que governa(va) desde a independência em 1975, e seu opositor militar, a Renamo, dominando o cenário parlamentar após as primeiras eleições multipartidárias de 1994. 

 

Essa bipolarização manteve-se até agora, embora a Renamo tenha sofrido uma erosão abismal da sua representação parlamentar – por culpa do seu desempenho errático e também de uma férrea avidez de dominação por parte da Frelimo, recorrendo muitas vezes a um maquiavelismo defraudante dos processos eleitorais.

 

Para além de estabelecer essa bipolarização parlamentar, as eleições de 1994 ofereceram material empírico para as primeiras leituras sociológicas da geografia do voto em Moçambique. A academia captou nuances claras do voto regional (com parte considerável do eleitorado do sul e do norte votando favoravelmente na Frelimo e parte considerável do eleitorado do centro apoiando a Renamo). Foram também captadas fortes nuances do chamado voto étnico.

 

Pese embora a dominação da Frelimo, estas configurações do voto não mudaram radicalmente de lá até cá, mas a introdução das autarquias locais trouxe novas leituras sobre o comportamento do voto, marcadamente nos principais centros urbanos em Moçambique. 

 

Na Beira, um eleitorado suportando aguerridamente o MDM, depois da saída de Daviz Simango da Renamo – em 2008, depois da sua expulsão da RENAMO, Daviz Simango concorreu como candidato independente à edilidade do município da Beira, onde obteve 61,6% dos votos, derrotando os candidatos da FRELIMO (33,7% de votos) e da RENAMO (2,7% de votos). Um eleitorado de Nampula, incapturável para a Frelimo, transitando entre a devoção à Renamo e o apoio ao MDM, tendência apenas quebrada no mais recente pleito autárquico. E Maputo, um eleitorado afecto à Frelimo, mas que nas recentes eleições autárquicas manifestou seu cansaço perante o regime, apostando em Venâncio Mondlane. Essa ousadia foi rechaçada pelo mesmo maquiavelismo defraudante da Frelimo, jogando sempre em campo eleitoral com plano desniveladamente favorável para si.

 

Mas a demanda por mudança por parte de uma juventude sedenta de emprego e educação era como que um vento imparável com as mãos. Seu voto de protesto quase que triunfava em Maputo. A política de Venâncio Mondlane e Manuel de Araújo conseguiu arregimentar um contingente juvenil que acaba confirmando uma coisa: se em 2023, em Maputo, essa juventude mostrou que o apelo da Frelimo como partido da libertação colonial já não fazia sentido diante de uma realidade pungente de miséria, desemprego e marginalização, e a percepção enraizada de uma elite mergulhada na corrupção e no “rent seeking”, depauperando o Estado.

 

Quando Venâncio foi escorraçado de Maputo, para tristeza dos seus seguidores, seu projecto de usar a plataforma da Renamo para atacar as presidenciais devolveu a esperança a essa vibrante juventude marginalizada. Mas a actual liderança da Renamo de Ossufo Momade, envolta em seu cinzentismo camaleónico, fez de tudo para se manter no poder, mesmo perante a evidência macabra de que ele não tinha nem carisma nem virilidade máscula para disputar, com quer que fosse, a batuta quente da Ponta Vermelha. Ele ostracizou Venâncio, contra as expectativas de boas franjas de membros da Renamo e até da sociedade. 

 

Agora, no histórico acto eleitoral de 9 de Outubro, Ossufo Momade recebeu o troco. De acordo com as contagens parciais já feitas, ele deixará certamente de ser o líder da oposição, perdendo as fabulosas mordomias inerentes ao cargo. O acto eleitoral de 9 de Outubro foi histórico porque mudou a configuração do espectro político moçambicano, nomeadamente da Assembleia da República. Os resultados parciais mostram que a Renamo passará para terceira força parlamentar.

 

Juntando esta evidência ao significado retirado das eleições autárquicas de 2023, nomeadamente o esvaziamento da referência de partido da Independência da Frelimo, podemos chegar a uma conclusão inabalável: a clivagem política resultante da guerra dos 16 anos chegou ao fim; a Frelimo e a Renamo já não terão espaço para se digladiarem em torno desse tenebroso referente histórico, que cavou uma profunda ferida de diferenças entre dois principais partidos moçambicanos.

 

Agora, com a emergência do Podemos, à boleia de Venâncio Mondlane, a nova configuração parlamentar abrirá espaço para uma discussão política mais programática na AR e menos bloqueada pelo passado da guerra dos 16 anos. Nesse sentido, a eleição de 9 de Outubro inaugura um novo paradigma parlamentar, rompendo com o bloco bipolar Frelimo/Renamo, dando lugar a um novo espectro parlamentar de carácter multipolar, embora com a Frelimo assegurando ainda uma maioria considerável. Trata-se, na verdade, de um “Adeus às Armas” ou da sepultura da FRENAMO.

 

Para além do fim da dicotomia referida, vale a pena notar que os resultados destas eleições mostraram a perda de relevância do voto étnico/regional. O desempenho positivo de Venâncio Mondlane (oriundo do Sul) e do Podemos (formado por dissidentes da Frelimo baseados em Maputo), no centro e norte, mostra a emergência de um novo eleitorado, para quem, mais do que a pertença regional ou ética do candidato (partido), o que conta é a mudança do regime da Frelimo através da força da juventude, encarnada neste caso na figura de Mondlane.

 

Os primeiros resultados mostram que eleitores moçambicanos boicotaram a votação, com uma afluência de apenas 30%. Duas hipóteses explicativas para este boicote: a reprovação ostensiva dos órgãos eleitorais (incluindo da justiça eleitoral, informada pela manipulação dos resultados no ano passado, e a perspectiva de os eleitores da Renamo terem ficado em casa, em sinal de reprovação da figura de Ossufo Momade. Tradicionalmente, a fraca afluência às urnas beneficia o partido incumbente, neste caso a Frelimo. Foi isto que aconteceu. (Carta da Semana)

Fonte: Carta de Moçambique