Padre Couto: meio século de sacerdócio na primeira pessoa

Um homem simples, erudito, poliglota e de fortes convicções. Desafiou a igreja, juntou-se ao movimento de luta de libertação nacional, o que, quase, lhe valeu a excomunhão, mas resistiu a tudo e hoje, ao celebrar 50 anos ordenação, fala da sua trajectória, dentro e fora da religião.

Em 14 minutos de uma oração, numa plateia maioritariamente composta por estudantes da Universidade Pedagógica (UP) de Maputo, Padre Filipe Couto falou dos seus 50 anos desde que foi ordenado pela igreja Católica.

Foi a 21 de Dezembro de 1969, na cidade de Lichinga, província do Niassa, que, pela direcção de Dom Francisco Nogueira, Filipe Couto era ordenado padre. Era o início de uma vida dedicada à obra da igreja e que hoje, em breves palavras classifica de “cinquenta anos de união com Deus”.

No seu breve discurso de retrospectiva Padre Couto explica que, contrariamente ao que pode parecer “a experiência com Deus vem com altos e baixos da vida”. Com um carácter e convicções fortes, explica que apesar do seu “casamento” com a igreja, teve momentos de desvio.

“Conheço as coisas que fiz. Falo com Jesus e, através dele, com Deus, mas sempre certo de que sou um grande pecador” confessou.

“Porém, também, sei que não vou ser crucificado, porque Jesus morreu para todos, e também para mim”, disse em tom irónico.
 
Um Padre entre guerrilheiro

Dois anos depois de ser ordenado, Padre Couto desafiou os princípios da igreja e foi-se juntar ao movimento de guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), na Tanzânia, uma aventura que ainda preserva na memória.

“Passado ano e meio comecei como padre no exílio. Fugi para a Tanzânia. Vivi com a FRELIMO de 1971 a 1975, trabalhei com eles (guerrilheiros) e pensava sempre Jesus” recordou, numa locução sem direito a perguntas.

A ousada aventura para o exílio, recorda, quase lhe custou a excomunhão da igreja, tendo sido salvo por um padre Jesuíta, que por ele intercedeu perante a comunidade da Consolata, para que o destino não fosse extremo.

“Esse foi um grande ponto de diálogo entre mim e os padres da Consolata e tive grande sorte porque o geral dos Jesuítas (falecido padre Arrupe) ajudou o meu geral a compreender que, o facto de eu ter fugido da colónia para o exílio e sentar-me com aqueles que chamávamos turras, não era motivo para me suspender, mas sim de compreender” recordou.

Meio século depois, Padre Couto faz uma meaculpa e deixa uma nota de agradecimento à comunidade da Consolata.
“Nesses 50 anos agradecendo os missionários da Consolata, aos quais eu pertenço, e que nem sempre fui bem para com eles, mas eles sempre foram bons para comigo. Houve momentos de guerra e conflito que sempre acabou em bons resultados” destacou.

Incompreendido no regresso

Mesmo escapando da punição, a vida de Padre Coutro na igreja não ficou totalmente pacífica. Segundo relatou, houve questionamentos entre os crentes, por causa da sua aliança com os guerrilheiros.

“Vim para Moçambique e Dom Manuel Vieira Pinto recebeu-me e pôs-me como pároco da Sê Catedral de Maputo” explicou e recordou alguns episódios menos positivos com alguns crentes que questionavam a sua presença.

“Quem é esse que entrou aqui. Estava com os guerrilheiros e agora é pároco. Esse não pode nos confessar” contou.

Colisão com o regime

As fortes convicções de Padre Coutro chegaram a colocá-lo em rota de colisão com as lideranças do governo moçambicano. Um dos momentos que recorda, foi o desentendimento com Samora Moisés Machel, primeiro Presidente de Moçambique.

“Havia uma guerra entre mim e o falecido Presidente Machel. Sabia que eu fechava a igreja e pegava gente da Frelimo, e regularizava os casamentos deles” recordou, sem avançar em detalhes.

Com Armando Guebuza, também recorda contradições filosóficas que deixaram marcas.
“Houve discussões com o Presidente Guebuza. Lembram-se da questão de Geração da Viragem”.

Em jeito de conclusão, Padre Couto classifica a sua trajectória como sendo “é uma experiência medonha e bonita mas cheia de conflitos e nunca é uma experiência aborrecida”.

 

Fonte:O País

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *