Um “crime” que pode custar o futuro de milhares de crianças do ensino público…

Os livros da quarta classe, novo currículo, são desviados do Sistema Nacional de Educação para alimentar o comércio informal na cidade da Maputo. Alguns são vendidos secretamente dentro de algumas escolas privadas e as crianças das instituições públicas de ensino estudam sem manuais. Os acusados pelo desvio são os directores das escolas e os professores são cúmplices.

 

Parece contraditório, mas os livros de distribuição gratuita e venda proibida estão à venda no mercado informal e em alguns colégios privados na cidade da Matola. São manuais desviados do ensino público e não chegam aos benificiários (crianças do ensino público) que são obrigados a sentarem três ou quatro alunos, numa carteira de dois, para todos poderem partilhar do mesmo livro. 

O reflexo desse problema é a Escola Primária Completa 04 de Outubro localizada na cidade da Matola, província de Maputo. Naquela instituição pública de ensino, há perto de 200 crianças, da quarta classe, a estudarem com falta de alguns livros e outras crianças nem um sequer chegaram a receber.

E porque não têm livros, as crianças lançam um olhar fixo ao colega ao lado e ao ritmo de camaleão copiam tudo para o caderno. A razão para esse défice de manuais é uma e talvez, também, muito antiga: o desvio de livros por parte da direcção para alimentar o “informal”, tal como denuncia Evaristo, nome fictício de um dos professores daquela escola. 

 “A distribuição de livros na Escola Primária 04 de Outubro não é tão equitativa como devia ser. É que há aquelas pessoas que acham que tem direito de tirar uma parte de livros para o bem próprio”, denunciou professor Evaristo.

O professor não tem, de concreto, uma prova que sustente a sua denúncia, mas na memória estão bem vivas as evidências que os seus olhos registaram aquando do desvio dos livros no acto da distribuição aos alunos.

 “Costumo ver uma vasta gama de livros na sala onde se distribuem os livros e levam uma parte e dão aos professores e a outra parte fica retida lá dentro. Não saem mais, mas se os livros ficam na direcção da escola ou na sala da directora significa que são aquelas pessoas que deviam zelar pela protecção dos livros que tiram”, afirmou num tom de firmeza, apontando alguns professores como cúmplices de uma rede que considera “grande e em crescimento”.

Cresce a suposta rede de desvio de livros naquela instituição de ensino primário e na mesma proporção crescem as dificuldades dos professores em trabalhar com crianças que não têm manuais.

“Há pessoas que não estão comprometidas com a educação. Essas pessoas deviam reflectir e pensar: não, não podemos ser assim”, lamentou Evaristo, professor da Escola Primária Completa 04 de outubro.

Inocentes e sem noção de que os livros que deviam ser para si são desviados, os alunos buscam nos seus sonhos forças para continuar os estudos mesmo sem livros. Com olhar que faz o “ping-pong” entra o caderno e o quadro, concentram-se na aula, seguram na caneta e vão escrevendo nos seus cadernos o caminho para um futuro que se espera melhor e risonho.

No coração e na mente, há sonhos por serem concretizados, mas os petizes não estão alheios a dura realidade que vivem no presente e que pode colocar em causa o seu futuro.

“Não tenho nenhum livro. Quando quero estudar, vou pedir emprestado o livro em casa da minha amiga. Na sala, o professor escreve no quadro e nós copiarmos”, contou Assucena Chirindza, uma das alunas da quarta classe na “04 de Outubro”, sustentada por anseio do seu colega de turma Eurico Sitoe que “gostaria de ter todos livros. Se eu tivesse, estudaria muito”.

E mesmo sem livros, as crianças não param de estudar. Os professores esgotam as teorias pedagógicas e até testam o improvável que chega a resultar. “Tenho alunos que apareceram no primeiro de aulas e esses receberam livros. Então, coloco os alunos sentados três numa carteira de uma forma que quem não tem livro consiga espreitar noutro. Assim consigo trabalhar”, explicou Jafet Mabote, professor da quarta classe na EPC 04 de Outubro.

E nestas condições, vão continuar a trabalhar os professores até que sejam repostos os livros que, na verdade, nem há esperanças de que isso possa acontecer. “Em relação a quarta classe, este ano, não sei se haverá reposição, tendo em conta que são novos manuais”, disse, desesperadamente, professor Augusto Macarringue.

Reagindo à denúncia sobre o suposto desvio de livros, a directora da Escola Primária 04 de Outubro desmente e diz não ser possível agradar a todos os pais e encarregados de Educação.

“Quando o encarregado apanha um livro que não tenha capa ou algumas páginas, julga que a escola recebeu um livro novo, mas todos os manuais que a escola recebe faz chegar aos alunos”, garantiu Olga Francisco, directora da Escola Primária Completa 04 de Outubro.

Para o caso específico da quarta classe, que estão a usar o novo currículo, Olga Manuel reconhece que não a escola não recebeu livros suficientes e também desconhece o número exacto dos alunos beneficiados na primeira remessa.

“Não tenho um número exacto porque ainda não fizemos o levantamento 03 de Março devido às entradas e saídas por isso não posso estimar, com exactidão que o número que nós temos corresponde aos 157 alunos”, avançou a directora da “04 de Outubro”.

E isso equivale dizer que há mais alunos, supostamente, entraram na escola depois da recepção dos livros. A estes, os Serviços Distritais da Educação da Matola não reconhece e garante que só fará chegar o manual da quarta classe aos alunos previamente planificados e que a 04 de Outubro terá de explicar de onde vêm as outras crianças.

Quem também não recebeu nenhum livro para ano lectivo de 2020 é a pequena Shantia. Está na terceira classe e estuda na Escola Primária da Machava. Não tendo livro, a menina de 9 anos é, igualmente, obrigada a copiar tudo para o caderno.  

“Na primeira classe aconteceu mesma coisa. Há anos que não recebeu livros e aí nada mais me resta senão comprar para ela”, revelou Francisco Muianga, pai da Shantia.

Desempregado, Francisco não tem condições para comprar os livros no mercado informal, tal como nos anos que sua filha não recebeu os manuais de distribuição gratuita na escola. “Eu vou comprar livros para ela quando tiver dinheiro e se não tiver, não há maneira”.  

“O País” sabe que os livros que carregam a escrita “distribuição gratuita e venda proibida” não abrangem as escolas particulares e caso os manuais com essas características apareçam em instituições privadas, estas terão de explicar como tiveram acesso a eles (os manuais). 

A nossa reportagem escalou o Externato 03 de Maio, província de Maputo, e constatou que cada aluno estuda, confortavelmente, na sua carteira porque não faltam livros. Curiosamente, são os mesmos manuais de “venda proibida e distribuição gratuita” que fazem falta às crianças do ensino público. 

Os livros de chegam àquela instituição, genuinamente, privada através dos pais que compram-nos no mercado informal. “Compramos os livros para os nossos educandos fora do colégio. No início do ano, a instituição passa-nos uma lista do material necessário e os pais foram comprar”, esclareceu Idalina Guilengue, encarregada de educação de uma das crianças que estuda no Externato 03 de Maio, sustentada por Amina Teixeira, que afirma que “realmente, nós temos comprado o material fora. Apenas o uniforme é que compramos internamente (no colégio privado) ”.

A direcção da escola está consciente da proibição do uso dos manuais com selo de “venda proibida e distribuição gratuita”, mas faz vista grossa à situação e permite a entrada dos manuais desviados.

“Como se sabe, os livros da distribuição gratuita nunca abrange as escolas particulares. Portanto, os alunos ou os encarregados de educação adquirem segundo as suas posses ou outros meios que eles usam para adquirir os livros”, referiu Bernardo Massuquela, director pedagógico do Externato 03 de Maio.

E um dos meios usados para aquisição do livro é comprando secretamente dentro de escolas privadas. A nossa reportagem simulou a compra de manuais, de distribuição gratuita e venda proibida, numa escola privada algures na Matola. O primeiro contacto é ao telefone, onde o encarregado de educação escolhe os livros que deseja e de seguida vai encontro para a entrega do livro.

A professora com quem se fala, primeiramente, leva-nos a recinto da escola, onde depois de esperar quase 15 minutos aparece seu colega com os livros escondidos numa pasta. A senhora recebe, vem ao nosso encontro e vende-os a um preço de 250 cada.

Já no mercado informal, na montra, estão os livros do ensino secundário que a venda é permitida. Nestas caixas, bem discretas, estão os livros do ensino primário com o selo de “venda proibida e distribuição gratuita”.

Para ter acesso a eles, o cliente só tem de manifestar interesse que, de imediato, as senhoras tiram da caixa e vendem a um preço único de 150 meticais cada, tal como constatou o jornal “O País”.  E assim vai crescendo o negócio ilícito da venda de livros.

Para o ano lectivo de 2020, foram adquiridos 18.455 200 livros de distribuição gratuita para o ensino primário avaliados em cerca de 17 milhões de dólares, dos quais 4.264.000 são da quarta classe, novo currículo e destes 236 mil foram alocados para Maputo Província.

Além das escolas primárias públicas acima mencionadas (Machava e 04 de Outubro), há falta de livros nas seguintes escolas: Escola Primária Completa Dignidade, Escola Primária Completa de Mussumbuluco, Escola Primária Completa da Liberdade, Escola Primária Completa da Liqueleva e Escola Primária Unidade “H”, todas na cidade da Matola, província de Maputo.

Tentamos ouvir o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, mas o director para área do livro disse que só fala com a autorização da ministra da área.

Enquanto, as crianças do ensino público vão estudando sem livros, as do privado compram onde podem e cresce o mercado informal de venda de manuais de distribuição gratuita.

 

Fonte:O País

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